Nem um pingo
Moradores de mariana sofrem com a constante falta d’água.
por Simião Castro
João chega em casa após um dia cansativo. Universitário em Mariana (MG) ele sai para o trabalho cedo e de lá corre direto para a faculdade à noite. Mal tem tempo de almoçar ou lanchar durante a tarde. Chega à república exausto e suado. “Tô vencido. Tô pregando”, pensa ele. Tudo o que mais deseja é um bom banho para relaxar. Limpar o corpo e o espírito.
Vai direto para o quarto, mal cumprimenta os colegas, pega correndo a toalha e se apressa para o banheiro. Arranca a roupa o mais rápido que pode, ansiando pela sensação da água escorrendo pelo corpo. Entra embaixo do chuveiro, chega a fechar os olhos enquanto abre o registro e… Nada.
Abre os olhos, e também abre mais o registro. Finalmente começa a sair algo do chuveiro: ar! “Esse pessoal tá de brincadeira comigo. Fecharam o registro do banheiro”, pensa ele desconfiando dos colegas. Verifica o tal registro. Tudo em ordem! Abre a torneira da pia, sequer uma gota. Seus planos vão por água abaixo.
A cena é frequente, mas ele nunca se acostuma. Só que agora se cansou. Precisa fazer alguma coisa. Ao menos tentar.
Na manhã seguinte, no ponto de ônibus para o trabalho, João comenta o caso com outras pessoas que por lá estavam. E fica sabendo de histórias muito semelhantes à sua. Juliana Silva, filha de Aparecida da Silva, que é cozinheira e mora na Rua Pinho, Bairro Rosário, conta que na casa da mãe sempre falta água. “Esta semana mesmo ficou três dias sem água. Antes ficava um ou dois dias sem água. Agora fica até quatro.” João se assusta ao saber por Juliana que a casa da mãe não é a única. O bairro todo é afetado.
Mas João ficou ainda mais impressionado ao perceber que o caso era mais grave. Já havia notado que às vezes a água chegava meio escura em sua casa, mas nada comparado com o que ouviu de Rosenea Castro, que mora na Avenida Manoel Leandro Correa, próximo à prefeitura. “É só chover que não conseguimos nem lavar roupas. A água fica da cor do Ribeirão do Carmo. A comida tem que ser feita com água mineral. É barro puro.”
João ficou indignado. No dia anterior, antes de se deitar – sem banho – procurara na internet informações sobre acesso à água e distribuição do recurso no mundo. Descobriu que, definitivamente, consumir água de boa qualidade é muito mais do que se deliciar com um copo de líquido cristalino. É uma questão de saúde pública, como se pode ver no site do Hidroex. “Segundo a Organização Mundial de Saúde, para cada dólar investido em saneamento, economizam-se cinco dólares nos dez anos seguintes em postos de saúde, médicos e hospitais.” Além disso, viu que no Brasil “cerca de 70% dos leitos dos hospitais estão ocupados por pessoas que contraíram doenças veiculadas pela água”.
Ele consultou, ainda, dados do IBGE, sobre a cidade de Mariana. E estranhou muito o que viu. De acordo com o Censo 2010, 15.894 domicílios têm canalização de água, o que corresponde a 46.698 habitantes, quase a totalidade da população urbana da cidade. Agora estava intrigado. Desistiu de pegar o ônibus e ligou para o trabalho. “Vou me atrasar um pouco. Preciso investigar uma coisa aqui!”, disse ao chefe.
Pôs-se a andar. Mas não sabia ainda para onde. Queria ir até o serviço de tratamento de água da cidade, mas se deu conta de que nunca ouvira falar da existência de um. Sequer havia pagamento de conta de água!
Parou em uma lanchonete e perguntou se tinham lista telefônica. Vasculhou o catálogo até achar: Serviço Autônomo de Água e Esgoto de Mariana (Saae). Rua Diogo de Vasconcelos, n 101, Galego, Mariana-MG. Telefone: (31) 3557-4481. Optou por não ligar, queria ir pessoalmente. Ao chegar, soube que o diretor executivo do Saae, um sanitarista, chamava-se Waldecir Luis Fernandes Junior. Pediu para falar com ele. Conversaram.
Waldecir explicou a João que o Saae era uma autarquia municipal, que dispõe de autonomia administrativa, financeira e técnica. E falou sobre a situação em que encontrava-se o órgão naquele momento. João pensava: “Sim, parece que estão em maus lençóis. Quer dizer… Em lençóis sujos.” O diretor disse a ele que o atual orçamento destinado a autarquia não contempla todas as ações necessárias para normalizar o serviço de distribuição de água na cidade. “O Saae depende da aprovação do orçamento no ano anterior. Com o que foi aprovado no ano passado, não dá pra fazer nada”. Disse também que nos últimos anos “não foi feito nada no Saae.” João continuava desconfiado. “Certo, então se o problema vem de antes, e agora? O que vai ser feito para resolver isso?”, questionou. O diretor continuou falando que a manutenção das redes de distribuição não vinha sendo realizada, que os filtros precisam ser limpos e trocados e que agora é preciso reabilitar todo o sistema. Mas não é só isso.
João ficou realmente assustado com uma das falas de Waldecir. No meio da conversa, o sanitarista alertou o rapaz para uma realidade complicada de lidar: o desperdício de água em Mariana é absurdo. Segundo ele, se um indivíduo comum gasta cerca de 150 litros de água por dia, em Mariana essa proporção pula para 500 litros todos os dias. E ele completa que as formas de desperdício são muitas. Uso de mangueiras como espécie de “vassoura hidráulica”. Exagero de água para lavar carros, casa… E aquela que talvez seja a principal razão. O fornecimento de água em Mariana não é tarifado.
Com a cabeça a mil, João foi embora. Pegou o ônibus para o trabalho e seguiu seu destino, refletindo. “Fica mesmo difícil ter água com uma rede tão mal cuidada, e essa relação predatória que a gente tem com os bens naturais… Eu só espero que tudo isso não vire outra promessa, mais uma vez. Se continuar desse jeito não adianta mesmo ter cano na porta, porque nunca vai ter água na torneira.”
João é um personagem fictício que retrata uma situação comum a muitos moradores de Mariana. As pessoas com quem ele conversa e os dados citados no texto são reais e demonstram a complexidade do problema da falta de água na cidade.
Veja mais:
Gota d’água Mariana
Unesco Water
HidroEX
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