O Reino de Miscelândia

January 16th, 2012Destaque ReticênciasNenhum comentário »

por Rondon Marques*
Atrás do muro do castelo, aquele que vai dar lá pelos caminhos do precipício, a Gatinha Angorá eriçava seus pelos num encontro oculto com o Gato Siamês. Tudo começara quando resolveu, tremendo de medo, mandar um bilhete para aquele que a fazia subir pelas paredes. “Meu cachorrinho, te espero no meio da madrugada, no Beco da Lua Escura”. Não estranhe, foi “cachorrinho” mesmo que ela escreveu. É que no Reino de Miscelândia a lei era a diversidade. Desde a época da Arca de Nãoé, sobreviveram muito poucas espécies do reino animal. Para multiplicar a cultura local foi proibido que todos os animais só pudessem se unir com espécies diferentes. Mas a Gatinha Angorá não resistiu aos seus instintos.

A Dona Mula, que já era resultado do cruzamento do Conde Jumento com a Lady Égua, se achava um exemplo de como a combinação podia dar certo. Vivia na janela de sua sala fiscalizando todos os jovens na idade de se apaixonarem. Ela viu quando a gata passou subindo a Escadaria do Sol Apagado, virou à direita, subiu no telhado de uma casa abandonada e pulou do outro lado do muro. Correndo para a cozinha, flagrou o encontro dos felinos infratores. Uma cena vexaminosa em plena rua: um ronronar que podia se ouvir de longe, com os corpos se curvando para o alto, se tocando e, para piorar o escândalo, com os rabos completamente elevados. Como poderiam?

Usando um pequeno espelho, Dona Mula fez sinal com o reflexo da luz da vela para o Guarda Ligre, filho do Coronel Leão e da senhora Tigre, costureira do reino. Em poucos minutos, ele estava na soleira da porta ouvindo o relato do encontro ilegal. Antes do raiar do dia o casal já estava dentro de uma gaiola sendo levado pelas ruas de Miscelândia. Ao assistir o triste desfile a Cabeleireira Avestruz sentiu arrepiar o pescoço, lembrando o que passara na noite anterior. O condutor da carroça, Seu Papagaio, perdeu a fala só de imaginar o que seriam de suas penas se alguém descobrisse seus vôos de fim de tarde.

O Gato Siamês foi levado para a cadeia e foi jogado ao fundo de uma cela úmida junto com outros contraventores. Macacos Pintores, o Grilo cantor, o pianista Polvo e toda a espécie de artistas se amontoavam naquele lugar. Todos reagindo com deboche e às costas da segurança ousavam cantar e fazer festas. Um pleno exemplo de desrespeito e deboche às leis implantadas em Miscelândia.

A Gata Angorá foi colocada em um cadafalso bem no meio da Praça das Pedrinhas. Pendurada pelo rabo a felina de pelos longos e alvos brilhava sob a luz do sol nascente. Ela não resistia. Girando ao sabor do acaso via pelos olhos entreabertos a fisionomia espantada de uma multidão que se aglomerava em volta. Cada um com seus questionamentos, pré-conceitos, instintos. A Ratinha Marta ficou atônita a pensar que nem conhecia o noivo escolhido por seus pais. Como seria esse tal de Elefante? A Leoa, movida pelo impulso materno, estava a ponto de dar mais um passo na defesa daquela pequenina indefesa. Mas nada. Ninguém se dignava a assumir que também poderia, algum dia, em algum momento, ter interesse por uma espécie semelhante a sua.

Ouve-se um som de marchas velozes. Os comentários sussurrados aumentam à medida que o caminho se abre para a passagem do cortejo. O Rei Ornitorrinco vinha imponente em seu andor carregado por formigas libertas que gritavam o lema do reino.

– Meio ave! Também mamífero! Todo diverso! Esse é o universo de Miscelândia!

Os animais batiam os pés no chão reforçando a marcha, mas não se sentia muita animação nisso. Nos lábios, sorrisos pálidos e temerosos. A todo o momento era importante estar atento a quem estava do lado. Afinal de contas ninguém queria ser suspeito de estar ao lado de igual.

O Rei Ornitorrinco elevou as mãos, provocando um completo silêncio. Deu a volta no altar do sacrifício, parou bem próximo da Gata Angorá, sentiu o cheiro, se afastou um pouco e questionou:

– Como ousas infringir a lei do nosso salvador, Nãoé? Você sabe quantos morreram por nós? E o pior, ainda suja o nome dos cães para acobertar uma união indecente como esta. Fomos escolhidos para estar aqui e perpetuar a multiplicidade das espécies. Juntos, entre iguais, estamos fadados a uma continuidade medíocre de raças puras…

Por um instante o corpo da felina moveu e ela pode encontrar um alento em meio ao sofrimento. Da janela da cadeia o Gato Siamês olhava impotente para sua amada. Aqueles olhos azuis eram o suficiente para enviar a acusada para uma outra realidade. Sem perceber murmurou:

– Meu cachorrinho…

O Rei parou de chofre o discurso que fazia para a multidão e questionou o que ela dissera. Nenhuma resposta. Mandou trazer uma bandeja de peixes frescos e colocou diante de seu nariz. Nenhuma reação. Desesperado o Gato começou a bater com as pedras nas grades ensaiando um coro:

– Temos instintos, queremos ser iguais! Temos instintos, queremos ser iguais!

O bando artístico da cadeia deu ritmo ao protesto improvisando instrumentos nos canos de esgoto da cela, com os talheres e pratos, com plásticos de bala e até assoviando com palmas. Indignado o Rei Ornitorrinco não sabia como reagir a tamanha insolência. Igualdade? Instintos? Música? Arte? Há muito não ouvira algo tão fora de propósitos.

Angorá sorriu levemente ouvindo ao longe uma canção animadora. Sentiu o sol aquecer os pelos de sua barriga e sentiu vontade de esticar seu corpo. Que sensação gostosa, relaxante!

Os gritos tomaram conta de toda a praça. O Rei Ornitorrinco olhava sem reação a tudo aquilo. Procurou apoio em sua conselheira Coruja que deu um giro no pescoço e piscou para alguém que estava às suas costas. Pedras, coroa, tiros, manto, poeira, muitos gritos, uma música. Siamês esgueirou seu corpo pela fenda das grades e, apoiado pelos tentáculos do Polvo, pulou bem perto do cadafalso, já com o segundo pulo preparado terminando, com o terceiro, já ao lado do corpo inerte de sua amada.

Em meio a balbúrdia surge entre coices e relinchos, Dona Mula. Exaltando o valor do amor ela começa a cantar enquanto sapateia com seus cascos. A voz rouca e desafinada ecoa e desperta a curiosidade dos que rolavam ao chão em nome de seus conceitos e instintos. Entre lágrimas e soluços ela confessa que, na verdade, era fruto de uma união pura. Conde Jumento e Lady Égua eram primos-irmãos que foram criados em lares separados.

Minutos de silêncio antecederam a um grande aplauso e gritos da nova ordem social:

– Somos aves! Também mamíferos! Somos iguais! Esse é o reino de Miscelândia!

Aclamada pela coragem de assumir sua origem, Dona Mula foi proclamada a nova rainha de Miscelândia. A partir desse momento passou a valer a lei que cada um se relacionasse apenas com os seus iguais.

Siamês respirou fundo, passou a pata no rosto de Angorá, fechando os olhos de sua amada, caminhou lentamente entre a multidão que comemorava. Pulou sobre o muro e caminhou em frente. Quando ia passar para o telhado, olhou para baixo e viu uma Poodle de pelos negros. Perdeu o equilíbrio, caiu no gramado do quintal daquela casa e, ainda meio tonto, murmurou:

– Minha cachorrinha…

*Rondon Marques Rosa é jornalista formado pelo Centro Universitário de Belo Horizonte (UniBH). Escreve, pinta, desenha e é amante das artes e música. Atua como Assessor de Comunicação da Universidade Federal de Ouro Preto. A fábula acima é inédita e cedida por ele especialmente para publicação na Revista Dois Pontos.

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