Elza, do trem

January 30th, 2013Trilha do minérioNenhum comentário »
(ILUSTRAÇÃO: Lucas Lameira)

(ILUSTRAÇÃO: Lucas Lameira)

por Mateus Fagundes e Simião Castro

Acordar domingo cedo para pegar o trem. A frase pode remeter a histórias antigas, mas não. Já é século 21. E o trem, o da Estrada de Ferro Vitória a Minas, até moderno. Entretanto, esse é sim o começo de uma história. De dois jovens. De muitas cidades. De ferro. De minério de ferro. De uma trilha. Da Trilha do Minério. De uma mulher.

Estávamos ansiosos com essa viagem. Seria nossa primeira vez à bordo. Chegar a Praça da Estação, em Belo Horizonte, foi como voltar no tempo. Tempo frio, inclusive, com sol discreto que dava um charme à ocasião – contrariando o fato de ser março: mês das águas e calor intenso.

Compramos as passagens, ficamos por pouco tempo no barulhento salão de embarque, com muita gente, muita mala, muitos abraços. Quem se atrasa, fica para trás. Mas ainda não havíamos visto a mulher da história…

Já dentro do trem, nos acomodamos em confortáveis poltronas da classe executiva. A passagem até Ipatinga – nosso ponto de parada – custa R$ 38. Até Vitória – Cariacica, na verdade, Estação Pedro Nolasco –, o valor é de R$ 82. Em classe econômica os valores são, respectivamente, R$ 24 e R$ 54. A composição desce as montanhas de Minas em direção a Vitória todos os dias, pontualmente às 7h30.

Eis que ela chega
Impossível calcular quantos mineiros – e o quanto de minério – já foram transportados pelos trilhos da Vitória a Minas. Quanto aço, produtos agrícolas, carvão, ferro gusa que passaram por ali e alcançaram o exterior. Quanta gente, quantas histórias e vidas se cruzaram e mudaram no caminho do trem – tudo modificado para sempre.

Vidas como a dela, que chega para sentar-se na poltrona ao lado. De trajes simples, acompanhada de uma menina (seria sua neta?). As rugas fortes, que lhe contornam o nariz e a boca, falam mais que sua idade. Pronunciam que a vida fora dura com ela. Mais dura que o sol que certamente o trabalho lhe fizera tomar. O que a expressão triste ao redor dos olhos parece confirmar.

Nossas malas ocupavam os lugares dela. Muito simpática, pediu licença e tiramos nossas bagagens dali. A empatia foi clara. Ali soubemos que teríamos uma boa companhia na viagem que nem havia começado.

— Prazer, Mateus. Simião, meu amigo.
— Prazer, Elza.

Apita o trem. Ela nos pergunta para onde iríamos e logo sentenciou seu destino. Resplendor, bem na divisa com o Espírito Santo. Vi que ela estava aberta a uma conversa e não me contive. Perguntei se nascera lá. Ela respondeu que estava indo para lá visitar a família, onde havia morado desde os três anos, mas que nascera no interior do Rio de Janeiro. Pegaria também documentos na cidade para entrar com o pedido de aposentadoria.

Com a fala fácil e solta, conta que é empregada doméstica, mas antes trabalhava na roça para uma sobrinha, “passando humilhação”. Elza diz que a parente não a tratava bem. Cansada das dificuldades que a vida na roça trazia, Elza e seu marido decidiram acompanhar os filhos que moravam em Betim, região metropolitana de Belo Horizonte. Os dois mudaram-se para a cidade no dia 1º de outubro de 1998 – ela tem ótima memória para datas e acontecimentos de sua vida e de seus familiares. Foi quando começou a trabalhar como empregada doméstica. E o marido como ajudante de pedreiro. “Ele nunca reclamou da sorte. Acorda todo dia às 4h30 da manhã e ainda assim é feliz”, orgulha-se.

Canarinho na gaiola
Elza não gosta da cidade. No concreto, ela se sente como um “canarinho preso na gaiola”. À medida que o trem vai deixando aos poucos a cidade de Belo Horizonte ela diz ir se acalmando. “Vou vendo mato, capim, gosto mesmo é da roça, do cheiro do mato”. Ela se diz feliz ao ver as pastagens e cavalos de raça no caminho. É a quarta vez que faz a viagem de trem até a cidade onde cresceu.

Digo que também me agrada a paisagem, pois também sou do interior. E critico a vida na cidade, à qual ainda estou me acostumando. Comento que estou gostando da viagem e falo do quanto seria bom ter um transporte assim, de qualidade, dentro de Belo Horizonte. Reclamamos – eu e ela – do trânsito e da vida agitada.

Com uma hora, já estamos em Barão de Cocais. Ela começa a ficar ansiosa e deseja fumar, mas as regras do trem não permitem. Isso a faz confessar que não gosta de viajar de trem. Está nele porque é barato. Acha a viagem demorada.

São um pouco mais de 12h de BH até Vitória, a mais ou menos 55 Km/h. Por um caminho que, primeiro, corta as regiões da Serra do Espinhaço, chega ao Vale do Rio Doce e acompanha o curso de água até o Espírito Santo. Já em terras capixabas, abandona o rio – que dá nome à empresa que administra a linha – e segue em direção ao oceano.

Capciosamente, pergunto se ela já havia completado a viagem até o mar. Muito simpática, ela ri e diz que do mar só conhece as imagens da televisão. “E nem tenho vontade de conhecer”, enfatiza. Porém, irritada por não poder fumar, e reclamando dos funcionários do trem que a impediram disso, Elza diz que nunca mais vai andar de trem na vida.

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(ILUSTRAÇÃO: Lucas Lameira)

Sobrinho-filho
Elza é uma dessas mulheres à moda antiga. Matriarca que se sacrifica pelos filhos. Dela mesmo são quatro. O mais velho, que é sobre quem fala mais, tem problemas mentais, é alcoólatra e cego de um olho. Além de ter morado quatro anos com uma mulher da idade da mãe.

A menina que viajava com ela é uma de suas netas, Claudiana, de cinco anos, filha de Luciana. A garota tem os traços da avó. E o cabelo comprido e desgrenhado também lembra muito o dela – exceto pelo tom louro da menina, e o castanho da mais velha. Elza tem ainda mais dois filhos e uma neta de cada um deles.

A matriarca criou ainda o sobrinho mais velho, filho de uma irmã. O rapaz cresceu com seus filhos e era muito bom para ela. Querido como se tivesse nascido dela mesma. Talvez por isso a lembrança de sua morte a machuque tanto, e a faça chorar pela primeira vez na viagem. O moço, ainda jovem, morreu num acidente de moto, em 1º de maio de 2006. Sua última estação fora a estrada.

Com lágrimas rolando pelo rosto, Elza conta todos os detalhes da tragédia, conforme os relatos que ouviu. O deslocamento de ar provocado por uma carreta, no anel rodoviário de BH, teria jogado a moto do sobrinho contra a lateral de um ônibus. Diz-se que, embora de capacete, ele caiu no chão morto. A irmã dela, mãe do rapaz, sofreu menos que ela, pois não teve “contato com o filho”. Ela nunca visitara o rapaz em Betim. O marido nunca deixou.

Chamando por ela
Para Elza, os filhos não podem se afastar dos pais, ainda mais quando todos moram no que lhes pertence. Ela mesma, no entanto, teve de se afastar dos pais em razão dos trilhos da própria vida. Nunca abandonou, porém, a forte ligação que cultiva com a família.

Casou-se com um bom homem, que lhe dava liberdade. E lembrou-se dos pais que casaram-se no interior do Rio de Janeiro e depois foram morar em Resplendor. A mãe abortou espontaneamente várias vezes. Vivos, são três irmãos apenas. Ela é a mais nova. E deve ter algo em torno dos 65 anos.

É com muita mágoa que Elza fala sobre a vida sofrida do pai. Ele era cuidador da Fazenda Santa Bárbara, em Resplendor. Segundo ela, trabalhou lá por 42 anos sem nunca receber direitos trabalhistas. Ela procura dar noção do tamanho da propriedade. Diz que tem “terreiro de pedra. ‘Cabe’ mais de 4 mil engravatados. Carros de luxo para o pessoal da roça: S10, D20…”

Indignada, confidencia que o pai não teve assistência alguma antes de morrer “de derrame”, em outubro de 1995. E que os patrões só ajudaram no enterro dele com R$ 310 porque seu irmão ameaçou entrar na justiça.

Morte, aliás, é assunto recorrente na conversa com Elza. Ela vai às lágrimas pela segunda vez quando fala que a mãe morreu chamando por ela, na cidade de Resplendor, em 2010. Vítima também de um acidente vascular cerebral, partiu depois de ficar dois anos na cama. Tinha 88 anos, estava magra e debilitada. Os olhos de Elza brilham – não pelas lágrimas, porém – ao lembrar da devoção que seus pais tinham um pelo outro. “Os dois só se separaram por Deus”, emociona-se.

Estamos cada vez mais próximos do nosso destino. A viagem passou rápida em razão da conversa tão intensa e profunda. O trem chega ligeiro em Ipatinga. Simião e eu nos despedimos de Elza e desejamos a ela e a neta uma boa viagem. Que ficasse com Deus e que tudo desse certo com sua aposentadoria. É hora de descer na estação. O trem apita e leva Elza mais uma vez para o seu destino.

É quando me lembro de um detalhe: Elza de que mesmo? Não perguntei o sobrenome! Acho que não importa muito também. Para nós ela sempre será a Elza do Trem.

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